O conceito de estuário é claro: é
uma bacia costeira semi-fechada onde a água do rio se mistura com água
do mar. Sendo uma zona de mistura é de esperar que seja difícil de
delimitar, pois as propriedades da água tendem assimptoticamente para os
valores nos seus extremos (marinhos a jusante e do rio a montante). Em
zonas sujeitas a maré a dificuldade de delimitação é ainda maior por o
escoamento na fronteira com o mar ser alternado (com excursões de maré,
que podem ser da ordem da dezena de quilómetros).
Critérios
de Delimitação
A salinidade é um traçador da água
do mar e por isso pode ter um papel preponderante na delimitação do
estuário. Ela não é no entanto o único parâmetro utilizável para esse
fim, nem é sempre o mais adequado. Os estuários com caudais fluviais
pequenos comportam-se como lagoas costeiras, sendo a água no seu
interior sobretudo de origem marinha (é o caso do estuário do Sado, a
sul de Lisboa). Um critério baseado exclusivamente na salinidade poderia
colocar o limite de jusante no interior do próprio estuário. Pelo
contrário, quando o caudal do rio é muito grande, uma parte importante
da mistura ocorre já no exterior do estuário e então um critério baseado
exclusivamente na salinidade poderia colocar o limite do estuário longe
da zona de costa, de forma pouco realista.
Os limites do estuário devem ser fixados tendo em consideração o seu
papel na ecologia costeira. O papel dos estuários resulta da grande
produtividade biológica na coluna de água e nos sedimentos, a qual está
intimamente ligada a tempos de residência elevados dos nutrientes
recebidos de terra e da sua capacidade para os reciclar e reutilizar.
Para proteger os estuários a eutrofização deve ser evitada na coluna de
água e nos sedimentos e a concentração de poluentes deve ser mantida
dentro dos limites tolerados pelas espécies que usam o estuário durante
todo ou parte do seu ciclo de vida.
Os limites de um estuário devem ser tais que as zonas de tempo de
residência elevado e zonas de deposição devem ser consideradas zonas
interiores. Isto significa que alguma mistura pode ocorrer já fora do
estuário. Estas zonas de mistura fora do estuário são as chamadas
“ROFI’s: Regions Of Fresh water Influence”, Simpson (1997). O conceito
de ROFI assenta no facto de a maioria da mistura ocorrer no interior do
estuário, mas de uma parte ocorrer fora do estuário em zonas que podem
atingir centenas de quilómetros de comprimento (e.g. Reno, Delaware,
Mississipi).
O
limite de montante
O limite de montante de um estuário
é pouco importante em termos de gestão uma vez que, de qualquer modo, o
estuário é o destino final da generalidade dos produtos transportados
pelo rio.
Nos estuários sujeitos a maré, esta é normalmente sentida alguns
quilómetros a montante da penetração salina gerando um escoamento
alternado nesta zona, com tempos de residência que dependem do caudal do
rio e da morfologia do canal. Admitindo o tempo de residência como um
factor importante para a definição dos limites do estuário, é de esperar
que o limite superior seja localizado entre o limite de propagação da
maré dinâmica e o limite de propagação da maré salina.
A matéria particulada flocula em zonas de salinidade superior a 2‰ e por
isso a montante da maré salina não há deposição de materiais finos, nem
acumulação de poluentes no fundo. Assim, em termos de acumulação de
poluentes, o limite superior de um estuário poderia ser o limite de
penetração da água salgada. Contudo, a descarga de água de refrigeração
ou de BOD na zona de propagação da maré dinâmica deve ter em
consideração o movimento alternado da água naquela zona.
O
limite de jusante
O escoamento na zona da embocadura
dos estuários portugueses é do tipo alternado devido à maré. Durante a
enchente a água que entra no estuário é em parte água que saiu na
vazante anterior e água do mar que se mistura com a água do estuário.
Deste processo de mistura resulta a distribuição de salinidades no seu
interior.
Na zona da embocadura podemos assim definir cinco zonas:
• A zona afastada do estuário, que não o afecta, nem é afectada por ele,
• Uma zona onde o escoamento é predominantemente de saída do estuário e
que pode ser afectada por ele,
• A zona por onde o escoamento é predominantemente de entrada no
estuário e que por isso não é afectada por ele, mas que o pode afectar,
• Uma zona de mistura com oscilações de salinidade importantes durante
um ciclo de maré, que é afectada pelo estuário e que o pode afectar,
• Uma zona que está claramente dentro do estuário.
O limite de jusante do estuário deverá incluir a zona de mistura cuja
água tem grande probabilidade de voltar a entrar no estuário durante a
enchente. Estas regiões são facilmente identificáveis através da
circulação, mas dificilmente através das propriedades da água.
A definição dos limites do estuário com base nas propriedades da água
dificilmente consegue distinguir entre as zonas de mistura cuja água
volta a entrar no estuário e as zonas que são afectadas pelo estuário,
mas cuja água já não volta a entrar no estuário, ROFI’s. Uma ROFI é a
zona costeira adjacente ao estuário sujeita à influência da água doce
proveniente do rio, e por isso com salinidade inferior à da água do mar.
Dinâmica
de uma ROFI
Durante a vazante a água
proveniente do estuário desloca-se para a região costeira adjacente,
formando a pluma de vazante do estuário. O gradiente vertical de
densidade nesta região depende do caudal do rio e da mistura promovida
pela maré no interior do estuário. Quanto menor for o caudal do rio,
menor é a estratificação esperada. A quantidade de movimento do jacto de
vazante tende a formar uma pluma alinhada com o canal de descarga
(frequentemente o canal de navegação). A força de Coriolis tende a
deflectir este jacto para a direita da embocadura no hemisfério norte,
formando uma pluma paralela à costa. Esta pluma é a ROFI. A Figura 1
mostra as ROFI do Reno (Holanda) e do Delaware (EUA).
Quando a maré inverte e a enchente se inicia, parte da água que saiu do
estuário durante a vazante volta a entrar. No caso de estratificação
vertical importante, o gradiente de densidade reforça o papel do atrito
de fundo e a enchente inicia-se pelo fundo. No caso de estuários
verticalmente homogéneos, com velocidades de vazante fortes, a enchente
inicia-se preferencialmente pelas zonas laterais entre o jacto de
vazante e a costa. Estas correntes de enchente tendem a cortar o jacto
de vazante na embocadura do estuário. Este mecanismo de transição de
vazante para enchente é dominante nos estuários Portugueses.
A água descarregada pelo estuário entra nas correntes litorais, que a
transportam paralelamente à costa. O escoamento litoral é forçado pela
maré, pela estrutura vertical de densidade e pela interacção com a
atmosfera. De qualquer modo, no hemisfério norte o deslocamento da pluma
do estuário é predominantemente para a direita e, por conseguinte, na
costa portuguesa ele é preferencialmente para norte.
Os estuários que descarregam para baías podem formar ROFIs onde a água
descarregada em cada maré é identificável pela sua forma em “lente”.
Estas “lentes” vão-se misturando umas com as outras e com a água da
baía, antes de entrarem na circulação costeira global (este é o caso dos
estuários do Tejo e do Sado em Portugal). Este efeito é visível noutros
estuários, desde que a corrente litoral não esteja presente. Mais
detalhes sobre a formação das ROFIs e da sua importância ecológica podem
ser encontrados em Lewis (1997).
Propriedades da água
O conceito de ROFI torna a
definição de propriedades da água do mar mais objectivo. Em termos
esquemáticos podemos distinguir três massas de água no exterior do
estuário: (a) a ROFI, (b) a região misturada e (c) a região com
estratificação térmica: Figura 2.
A zona de estratificação térmica
corresponde à “zona de oceano aberto” ou seja à zona que não é afectada
pelo estuário, nem o afecta. O efeito de corte reduzido típico das áreas
de grande profundidade cria condições para estratificação vertical,
máxima no Verão. A zona misturada corresponde à região de baixa
profundidade onde o escoamento de maré é suficientemente forte para
gerar turbulência capaz de promover a homogeneização da coluna de água,
destruindo o gradiente vertical de temperatura típico do mar aberto e o
gradiente vertical de salinidade típico da ROFI. As dimensões relativas
das três regiões dependem da topografia local, do forçamento atmosférico
e da descarga de água doce.
Figura
2
: Massas de água no
exterior de um estuário: ROFI, zona misturada e zona com estratificação
térmica. Adaptado de Lewis (1997).
A água do mar é a água na zona de estratificação térmica da
Figura 2
. Contudo as águas na ROFI e na zona de mistura não entram no
estuário e por isso devem ser consideradas águas exteriores. Para
efeitos de gestão de estuários as águas exteriores devem ser
consideradas como sendo água do mar.